quarta-feira, 11 de março de 2009

A invenção do Nordeste
por Isabel Guillen

A Fundação Joaquim Nabuco, através de sua editora Massangana, e em parceria com a editora Cortez, de São Paulo, trazem para o público leitor um trabalho de fundamental importância para os estudos históricos, e que até o presente estava restrito ao meio universitário. Trata-se da tese de doutorado de Durval Munis de Albuquerque Jr., A Invenção do Nordeste e outras artes, vencedora do concurso Nelson Chaves de teses sobre o Nordeste Brasileiro de 1996, instituído pela fundação, há mais de uma década. Chega às livrarias para tornar-se presença obrigatória em toda biblioteca de estudos sobre o Nordeste.

Depois de percorrer as mais de trezentas páginas somos tomados pela perplexidade, pois torna-se cada vez mais óbvio que o Nordeste é uma tradição inventada, no sentido posto pelo historiador inglês Eric Hobsbawn. Como ninguém antes tinha pensado nisso? É aí que entra o traço do trabalho do historiador, mostrando como as tradições têm histórias que para se constituírem enquanto tais, devem ter sua historicidade apagada.

Em seu trabalho de historiador, Durval nos conduz pelos caminhos e meandros dessa invenção, que é sobretudo discursiva, mostrando que o Nordeste não é uma entidade natural que sempre existiu, que houve um momento em que determinadas condições de possibilidade propiciaram o seu agenciamento. Explorando teoricamente os trabalhos de Foucault e Deleuze, Durval demonstra que o Nordeste é uma visibilidade e uma dizibilidade (condição de possibilidade de enunciação) sempre resposta, em permanente construção, o que vem reforçar o argumento de sua historicidade, já que não se pode tomar a região como portadora de uma essência e tampouco como um dado natural inscrito no espaço geográfico.

Tendo como ponto de partida a década de 20, e a emergência de um discurso regionalista de novo tipo, e construindo uma série documental formada pela obra de Gilberto Freyre, base da invenção do Nordeste, passando pelos romances regionalistas da década de trinta, pela música de Luiz Gonzaga, pelas paisagens de Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro, pelo teatro de Ariano Suassuna, pelos filmes de Glauber Rocha, pelos romances de Jorge Amado, o trabalho vai ao longo de suas páginas consolidando o argumento de que o Nordeste é uma produção imagético-discursiva, filho da modernidade, mas filho reacionário, gestado para “conter o processo de desterritorialização por que passavam os grupos sociais desta área, provocada pela subordinação a uma outra área do país que se modernizava rapidamente: o Sul.”

Mas a paternidade do Nordeste não pode ser atribuída com exclusividade ao Sul, e este é um dos maiores méritos do trabalho de Durval: mostrar que “o preconceito em relação ao Nordeste e ao nordestino nasceram de uma dada visibilidade e dizibilidade da região, que não foi gestada apenas fora dela, mas por seus próprios discursos e reproduzida por seu próprio povo.” Foram os intelectuais acima apontados os pais desse Nordeste, engenho de fogo morto, sinhozinhos herdeiros da decadência do açúcar, elite anti-moderna. Nordeste assolado pelas secas, terra gretada, empobrecida, percorrida por beatos e fanáticos, consumida pela violência de cangaço e do coronelismo.

O Nordeste viria a ser a cristalização de uma série de esterótipos (seca, sertão, coronel, beato, cordel, cangaceiro, migrante, civilização do açúcar, engenho, folclore, cultura popular) subjetivados numa “identidade nordestina”, um modo de ser vitimizado diante da modernidade que assolava o país a partir dos anos 30. Durval nos mostra como ao longo dessas décadas o Nordeste foi se configurando a partir de um saber gestado aqui mesmo como uma maquinaria anti-moderna. Saber que justificava as posturas das elites regionais das relações capitalistas de “novo tipo” que emergiam no país, saber que alimentou a indústria da seca, os empréstimos às usinas ineficientes, etc.

Sem deixar de utilizar uma linguagem literária e poética, o autor contribui por dessacralizar as “difíceis” teses acadêmicas. Durval vira pelo avesso a engenharia discursiva que inventa o Nordeste, mostrando os pontos e nós das tramas que criam uma dada nordestinidade. Mas vai muito mais além, espraiando-se por terrenos não meramente acadêmicos. Quando afirma que o discurso regionalista se “transforma em maquinarias de captura do novo”, respondo ad nausean a imagem do Nordeste como região carente, o autor detém-se para corajosamente colocar que os discursos que inventaram o Nordeste como anti-moderno são os mesmos que nos apresentam como vítimas diante da História, como se a culpa por nosso atraso fosse sempre dos outros, não nossa, enquanto vencedores ou vencidos. “São discursos presos a essa lógica da vitimização, da culpa sendo posta sempre no outro, criando um eu descomprometido com sua própria condição.”

Essa é a condição para a emergência de um outro saber que invente outros Nordestes, longe das clausuras que nos delimitam, das continuidades identitárias, das fronteiras regionais, questionando-as, colocando em xeque a existência das regiões, dissolvendo tanto o Nordeste quanto o Sul, dando lugar a novas espacialidades de perder e de saber.

* Isabel Guillen é doutora em História pela Unicamp

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Jornal do Commercio
Recife - 04.09.2000
Segunda-feira

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