quarta-feira, 11 de março de 2009

Espoliação e resistência
A Ferida de Narciso - Ensaio de História Regional
Evaldo Cabral de Mello

Folha de São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

MARCUS J.M. DE CARVALHO

Todo leitor é um chato. Borges dizia isso de uma maneira mais sofisticada, ao lembrar que o leitor pode exigir o que quiser de um texto. É como se um livro, depois de publicado, deixasse de ser do autor, pois qualquer um pode dispor de suas idéias como bem entender. É por isso que exigimos tanto de autores reconhecidos. Evaldo dispensa até sobrenome entre os que gostam de história, esse ramo rigoroso do conhecimento que tem um objeto tão fugidio -o homem no tempo- que termina criando um encontro entre a ciência, a filosofia e a arte. É quase fatal, portanto, que todo grande historiador também seja um grande escritor.
Neste ensaio enxuto, erudito e apaixonado, Evaldo mergulha na questão do regionalismo, trazendo algumas idéias originais e outras nem tanto, mas que estavam dispersas em sua extensa obra historiográfica. O Pernambuco enfocado não é o atual Estado, mas a antiga capitania e suas anexas, que hoje chamamos de Nordeste. Esse Pernambuco é tratado com um carinho quase antropomórfico pelo autor, que lhe imputa vontades e frustrações. Sem diatribes nem conformismo, é abordado o surgimento do regionalismo, como uma resposta a um longo processo que criou e manteve assimetrias que fincaram suas raízes mais profundas no século 19, quando o Nordeste pagou o preço da unidade nacional. Depois de sintetizar uma massa de evidências, a maioria das quais bastante conhecidas, conclui:
"O Império promoveu assim uma transferência maciça de recursos governamentais do norte para o centro-sul, num processo de espoliação fiscal aparentado às situações coloniais de tipo clássico".
Isso já foi dito por gente ligada à Cepal e até por brasilianistas. Mas o forte de Evaldo é a sua capacidade de articular processos econômicos não apenas com a política e seu complexo terreno discursivo, mas também com idéias e mentalidades. A "espoliação" das chamadas "províncias do Norte" não ocorreu sem resistência. A derrota de propostas autonomistas recorrentes terminou por sentimentalizar o federalismo, que em outras circunstâncias poderia ter sido uma mera opção administrativa de uma imensa nação, cujos governos foram sempre tendencialmente centralizantes e autoritários. A vitória do governo central foi militar. Para punir adversários e recompensar aliados, o todo que formava Pernambuco colonial terminou sofrendo divisões. O regionalismo, para Evaldo, é também uma resposta à "fragmentação arbitrariamente administrativa de um conjunto".

O nascimento da capitania
Para quem deseja uma síntese da construção da nação, "A Ferida de Narciso" também não desaponta.
Os primeiros dois capítulos delineiam o nascimento da capitania de Pernambuco, cuja autonomia incomodava o Governo Geral. Foi logo no começo também que se estabeleceram as diferenças entre os lavradores e os senhores de engenho, entre o meio urbano e o rural, entre a zona da mata sul e a do norte. Fica claro ainda que Gilberto Freyre exagerou a adaptabilidade do português e a intensidade do Brasil que havia dentro do Brasil quinhentista. A Nova Lusitânia era apenas o que o próprio nome sugere, um projeto de um "outro Portugal", como disse o poeta.
Para Evaldo, é um anacronismo estéril assentar os pródromos da consciência nacional na Restauração Pernambucana de 1654. A maior ironia do antilusitanismo oitocentista, que jogava contra os portugueses o exemplo holandês como o modelo de colonização ideal, é que os seus avós expulsaram os batavos precisamente por se sentirem profundamente lusitanos.
Mestre em discorrer sobre as intrigas intra-elites, Evaldo retoma temas tratados em outros livros seus. Tendo reconquistado a capitania com recursos próprios, os luso-brasileiros pensavam ter estabelecido um novo pacto com Portugal. Mas as recompensas pela Restauração foram pífias, causando enorme desapontamento, personificado em Fernandes Vieira que nunca teve a honra de governar a capitania pela qual tanto se bateu.
Pernambuco perdeu ainda a autonomia que tivera antes da guerra, sem auferir nenhuma das vantagens das capitanias régias. O autonomismo sobreviveu como uma idéia de um passado quase mítico que deveria ser recuperado. Gestado nos claustros como uma resposta ao invasor herege, o nativismo terminaria transbordando para as cidades na época da Independência. O ressentimento nativista iria impregnar as relações com Portugal, depois com o Império.
O império centralista e autoritário só agravaria os ressentimentos, ao promover a sangria das "províncias do Norte". Confirmando algumas teses também defendidas pela historiografia recente, Evaldo argumenta que a Insurreição Pernambucana de 1817 foi contra Portugal tanto quanto foi contra o Rio de Janeiro. No cerne de 1817 e da Confederação do Equador, em 1824, estavam o constitucionalismo e o autonomismo, que terminou se manifestando de forma republicana, devido às circunstâncias políticas de um país monárquico e autoritário, sob o comando exclusivo das províncias do centro-sul.
O teste decisivo do autonomismo foi a junta presidida por Gervásio Pires Ferreira, que tentou manter uma certa autonomia tanto em relação ao Rio de Janeiro quanto a Portugal, em 1821-22, mas terminou derrubado por um golpe tramado a partir do Rio de Janeiro, com o apoio do exército estacionado em Pernambuco.
No último capítulo -sob o sugestivo título "Tristeza do Império"-, Evaldo segue os liberais oitocentistas para quem a monarquia autoritária e centralista não era um mal necessário.
Havia alternativas. A identificação das propostas autonomistas com o separatismo e o republicanismo foi mais uma resposta ao centralismo da corte do que algo inerente ao federalismo e ao constitucionalismo liberal.
Livro bom é assim: não só explica como instiga. E nada mais estimulante do que a constatação de que poderíamos ter sido diferentes.
Este ensaio contribui efetivamente para a historiografia recente que tem detalhado a construção da unidade imperial, sustentada num frágil equilíbrio entre força e consenso. Estudos sobre as insurreições liberais do Nordeste na primeira metade do século 19 sustentam que as propostas centralizantes e autoritárias da Corte tiveram adeptos nas próprias províncias que viriam a ser prejudicadas pelo modelo vencedor. É muito difícil a dominação sem alianças ou sem ao menos uma nesga de consentimento do subordinado, como há muito ensinou Antonio Gramsci. Os Cavalcanti de Pernambuco, por exemplo -que posavam de autonomistas na corte-, ficaram do lado da Coroa durante os movimentos liberais de 1824 e 1848. Entre a retórica e a prática das elites havia distâncias intransponíveis. Mas este ensaio de Evaldo, embora deixe claro que as elites locais nunca foram unívocas, dá a impressão de ter havido um maior consenso interno entre os pernambucanos do que deixa transparecer a historiografia recente.
"A Ferida de Narciso" é um ensaio envolvente. Digo mais, necessário, pois retoma um assunto sobre o qual há quem pense que não existe o que dizer de novo. Mas o leitor, chato por definição, pode ficar ávido por mais do que talvez seja possível caber em cento e poucas páginas. Por exemplo, a analogia com o presente, que Evaldo evita, é irresistível. O livro argumenta que a Conciliação da segunda metade do 19 integrou as influências regionais, mas somente no âmbito clientelístico, não no tocante à representação dos interesses econômicos.
Talvez possamos dizer o mesmo sobre o período posterior até os dias de hoje, quando os "representantes" das províncias da periferia continuam representando apenas seus interesses clientelísticos mesquinhos e localistas, nunca ou raramente os interesses regionais mais amplos. O maior problema dos modelos excludentes nem sempre é o seu funcionamento, que pode até sofrer oposição, mas a imensa capacidade de se reproduzirem, perpetuando o que poderia ter sido diferente.
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Marcus J.M. de Carvalho é professor de história na Universidade Federal de Pernambuco.

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