sábado, 18 de setembro de 2010

MANUAL DO ENTREVIS ADOR DE HISTÓRIA ORAL

ANTÔNIO TORRES MONTENEGRO. HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA. A CULTURA POPULAR REVISITADA. São Paulo, Contexto, 2007, pág. 149-152

OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

O início de toda entrevista deve ser marcado por uma conversa de esclarecimento com o entrevistado para que este compreenda por que, para que e para quem ele está registrando suas memórias. Após a concordância do entrevistado em participar do trabalho, de¬ve-se preencher uma ficha com o nome completo, data e local de nascimento, endereço atual e data em que a entrevista está sendo realizada. O entrevistador deverá solicitar, por escrito, autorização para divulgar a entrevista. Caberá, entretanto, ao entrevistado decidir se a assina ao final da entrevista ou apenas após a transcrição da mesma.

COMO ENTREVISTAR

O ato de entrevistar, de sentar para ouvir as memórias, apro¬xima-se bastante da maiêutica socrática. Esta seria a própria "arte" de fazer, através do diálogo, com que os homens fossem aproximan¬do-se do bem, da verdade, do justo, que estava depositado em cada um.
o trabalho de rememorar, que se estabelece através do diálogo entre entrevistador e entrevistado, assemelha-se à maiêutica socráti¬ca, sobretudo pela empatia que deve existir. O entrevistador deverá colocar-se na postura de parteiro de lembranças, facilitador do pro¬cesso que se cria de resgatar as marcas deixadas pelo passado na memória. Entretanto, vale destacar que a relação que se estabelece entre o sujeito e o passado (da memória) está em constante mudança, diferentemente da "verdade" socrática.
Um dos postulados fundamentais, que deve balizar todo profis¬sional que se disponha a trabalhar com a memória, registrando-a através de entrevistas, é o fato de que a fala do entrevistado deve ser absolutamente respeitada. Ao entrevistador cabe a obrigação profis¬sional e ética de ouvir tudo que é descrito com a maior atenção, consciente de que o entrevistado não deve ou não tem obrigação de atender a quaisquer que sejam as expectativas teóricas/metodológi¬cas da pesquisa que então se realiza.
O caráter singular de toda memória (mesmo coletiva) e a forma como esta sempre se reconstrói a partir do olhar do presente fazem cada entrevista ter um significado muito próprio. Dessa maneira, ca¬be ao pesquisador procurar conhecer ao máximo a história em que a memória em tela foi construí da. Sobretudo porque terá muito mais condições de compreender a fala do entrevistado, assim como de intervir nos momentos que considerar necessários. Nesse sentido, as perguntas devem sempre ter um caráter descritivo e evitar qualquer indução ou juízo de valor. Pode-se mesmo, desde o início, definir com o entrevistado que este narrará sua vida. As perguntas devem ser curtas e evidenciar para o entrevistado que o fundamental são as descrições que este realiza ao respondê-las. É importante não fazer perguntas extensas e analíticas, porque facilmente se perderá a pers¬pectiva de resgate da memória. Vale destacar a necessidade de se estabelecer um clima de interesse e tranqüilidade, mesmo que o que esteja sendo contado possa eventualmente não atender a qualquer objetivo do pesquisador. Entretanto, muitas vezes, fatos e detalhes considerados de pouca monta se tomam, no conjunto de outras en-trevistas, profundamente significativos, abrindo novas perspectivas de estudo e análise.
O entrevistador interferirá sempre que alguma passagem não lhe parece clara ou quando algum aspecto lhe tenha chamado espe¬cial atenção. Nesse momento, as perguntas devem vezes, o entrevistado se faz calado; no entanto, percebe-se que são momentos de profunda introspecção. Pode-se acompanhar estes mo¬mentos, aguardando um gesto, um olhar, um sinal do entrevistado para que se retome a entrevista. Algumas vezes, naturalmente, o en¬trevistado decide falar sobre aquilo que estava silenciosamente rememorando.
A história oral tem como matéria a memória, que pode vir à to¬na através de estímulos diretos, que comumente denominamos me¬mória voluntária. No entanto, a própria experiência de entrevistar aponta a força da memória involuntária. Estímulos os mais diversos desencadeiam processos de associação e de rememoração que fogem ao controle efetivo do entrevistador. Nesse aspecto é que desenvol¬ver sempre a entrevista a partir da história de vida possibilita um extenso campo de estímulos involuntários e de associações. O fato de o pesquisador ter um perfil da história de vida do entrevistado aumenta, de forma significativa, a compreensão da própria memória do depoente. Um outro estímulo que pode ajudar muitas vezes o en¬trevistado a acrescentar novos detalhes ou mesmo a resgatar outras memórias de algum tema sobre o qual esteja dissertando é a repetição pelo entrevistador da última frase dita pelo entrevistado. Ou ainda de expressões como: "mas foi assim mesmo?", "ah, foi?", "foi mesmo?". Esta técnica, que é utilizada de maneira informal em qualquer conversa para demonstrar interesse, poderá servir como nova motivação para o entrevistado, acrescentar novos detalhes ao que está sendo narrado ou evocar outras memórias referentes ao as¬sunto em tela.
Toda entrevista tem sempre como objetivo algum aspecto do passado que se deseja resgatar. Após o entrevistado narrar a história da sua vida a partir da infância, o entrevistador poderá usar algumas expressões como: "e a política, e as greves, e as doenças, e o carna¬val, e a Segunda Guerra, e a revolução de 1930, 1932, ou 1924?". Nestes casos, estamos supondo que a entrevista está sendo realizada com velhos ou velhas. Esses são alguns exemplos de como voltar a temas pelos quais o entrevistador tem interesse, e que na hist6ria de vida do entrevistado, não foram abordados ou foram apenas de maneira superficial.

O NARRADOR

O trabalho de resgate da mem6ria se desenvolve muitas vezes sob a representação de que todas as pessoas idosas são narradoras ou mesmo contadoras de hist6rias exemplares. Descobre-se, entretanto, que esta é uma capacidade que alguns têm bastante desenvolvida e outros não. Nesse sentido, não é neces¬sário a um velho ou uma velha terem vivido um grande número de acontecimentos para serem narradores.
A capacidade de narrar uma hist6ria, um fato, uma experiência ou mesmo um sentimento está associada a dois fatores: por um lado, à descrição dos detalhes dos elementos que são projetados, de forma tão viva e rica que se assemelham a um quadro que vai sendo rede¬senhado às nossas vistas; por outro, à capacidade de recuperar o la¬do imaginário do que era vivenciado individual e coletivamente em relação ao acontecimento narrado. Na associação dessas duas ordens de fatores (a descritiva e a imaginária) descobrem-se as condições básicas de um narrador.
No entanto, há uma característica mais difícil de ser encontrada entre aqueles que denominamos narradores e que se aproxima do perftl estabelecido por Walter Benjamin no seu trabalho. O Narra¬dor. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Benjamin, ao analisar a obra de Leskov, refere-se àquelas pessoas que, ao viven¬ciarem determinados acontecimentos, viagens ou mesmo o cotidiano que lhes chega nas vivências diárias, transformam-nos em palco permanente de experiências. Estão sempre em busca de uma com¬preensão maior das coisas da vida, transcendendo os modelos pre¬concebidos. Nessas pessoas, que até parecem descoladas do seu tempo, descobre-se a sabedoria.

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